Da porta de casa, um cenário desolador. O olhar atento de seu Antônio 
Ferreira do Sá se perde no horizonte em meio a um sentimento de angústia
 quando se percebe que o verde que dá vida à natureza a seu redor vai 
aos poucos desaparecendo, sendo devastado pela seca. De um lado, o solo 
árido não permite que as plantações vinguem; de outro, animais 
debilitados por fome e sede se reduzem a carcaças expostas aos urubus. É
 nesse contexto que o homem do campo de 70 anos, hoje um dos mais de 4,1
 milhões afetados pela estiagem prolongada que assola a Bahia há cinco 
anos, tenta tocar a "vida pra lá de difícil", como ele mesmo diz.
 Morador de Barrocas, no distrito de Maria Quitéria, pequeno povoado na 
zona rural de Feira de Santana, segunda maior cidade do estado (a cerca 
de 100 quilômetros de Salvador), Antônio precisa de uma pausa longa para
 puxar na memória se já viveu situação parecida. Mas não se recorda. 
"Tenho 70 anos e não lembro de seca aqui como essa. Ouvi falar de uma em
 1932, quando nem tinha ainda nascido. A daquele tempo, segundo o povo 
conta, foi pior, porque morreram muito mais bichos e ficava todo mundo 
quase sem nada. Além disso, naquela época não tinha água da Embasa 
[Empresa Baiana de Águas e Saneamento] e hoje já tem".
Seu Antônio mora no distrito de Maria Quitéria, em Feira de Santana (Foto: Alan Tiago Alves/G1)
 O último período de estiagem "brava" de que o agricultor aposentado 
ouviu falar coincide com a época em que Graciliano Ramos publicava 
"Vidas secas" (1938), narrativa que se passa no sertão nordestino, 
marcado pelas chuvas escassas e irregulares, e conta a história do 
vaqueiro Fabiano, que, de tempos em tempos, era obrigado a se mudar com a
 família e a cadela Baleia de regiões castigadas pela seca em busca de 
sobrevivência.
 A Feira de Santana de seu Antônio, apesar do apelido de "Princesa do 
Sertão" dado pelo também escritor Ruy Barbosa por ser a cidade mais 
importante do interior do estado, fica localizada no agreste baiano, mas
 a "miséria" e a "desumanização" de que fala Graciliano para descrever 
os impactos da estiagem no sertão nordestino à época podem muito bem ser
 aplicadas à realidade atual de moradores do município.
 O Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) 
atesta que, desde que passou a reunir maior volume de dados 
meteorológicos, a partir de 1960, não houve estiagem como a vivida hoje.
 Mas a última seca tão prolongada e perversa como a atual, segundo dados
 oficiais, ocorreu mesmo antes do nascimento de seu Antônio, só que na 
década de 40. O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres 
Naturais (Cemaden), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, 
crava que o quadro atual, não só na Bahia como em todo o Nordeste, é o 
pior em 73 anos – o último período crítico, segundo o órgão, durou três 
anos, entre 1941 e 1944.
 Como reflexo da estiagem, conforme a Superintendência de Proteção e 
Defesa Civil (Sudec), a Bahia está atualmente com 218 dos seus 417 
municípios com situação de emergência decretada – 21 deles com 
racionamento de água. A situação crítica aflinge pequenas e grandes 
cidades, como Feira de Santana, Vitória da Conquista, na região sudoeste, e Juazeiro, na região norte.
 Ao contrário dos personagens de "Vidas secas", no entanto, seu Antônio 
não cogita sair do pedaço de chão em meio ao semiárido onde nasceu e foi
 criado. Tem esperanças de que, a qualquer momento, uma "chuva boa" caia
 e mude a realidade. "Tem quase um ano [que choveu]. A última chuva foi 
em outubro, mas foi pouca coisa. Chuva para trazer água aqui tem que ser
 de trovoada. Estamos esperando, mas até agora não chegou ainda. Mas 
daqui para essa semana ela vem. Pelas nuvens você conhece. Tem que vim 
porque Deus quer que venha. Se não vier, a gente tem que viver de 
qualquer jeito", diz.
 No quintal de seu Antônio, somente um cajueiro e alguns mandacarus, 
plantas mais resistentes à estiagem prolongada, conseguem se manter 
vivos. Um pé de pinha também ainda resiste com poucas folhas verdes, mas
 já murchas, e frutos apodrecidos que não servem sequer aos pássaros. 
"Eu plantava feijão, milho, mandioca, mas parei tem um bocado de tempo. 
Tá difícil", afirma.
 "Aqui, tenho aquela vaca ali, que é cismada, o bezerro e cinco cabeças 
de ovelhas. E tem essas galinhas também, mas são de um irmão. Um bezerro
 que era meu morreu na semana passada. Estava doente. Cerrou a boca e 
não estava querendo comer nada. Para os que restaram, a gente dá farelo 
de milho, cevada, mandacaru, pindoba. Tem que comprar ração, mas é caro.
 Se fosse achado de graça seria bom. Para beber, dou água da Embasa 
[empresa estadual de abastecimento de água], a mesma que bebo. A fonte 
que tinha [onde os bichos bebiam] secou essa semana", diz. O idoso 
também armazena no quintal dezenas de garrafas pet com água para dar aos
 bichos, caso a encanada pare de chegar. "Tem umas 70 [garrafas]. Nunca 
se sabe, não é?".
 O rastro da seca começa a ser percebido logo quando se sai do centro da
 cidade e se pega uma estrada de terra que leva até o povoado de 
Barrocas, no distrito de Maria Quitéria, onde moram Antônio e outras 
cerca de 200 pessoas. Em toda a zona rural de Feira de Santana,
 de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
 vivem 64 mil dos cerca de 618 mil habitantes do município. De carro, o 
trajeto pode ser feito em cerca de 40 minutos. No percurso, é possível 
observar vegetação e aguadas secas, além de animais mortos.
 De longe, também se avista uma poeira branca envolvendo uma carroça, 
que, diariamente, sobe e desce as ladeiras do povoado. Guiando o cavalo 
que puxa o veículo está Avelino Barbosa da Silva, de 51 anos. "Carrego 
palma para dar para as ovelhas, carrego água. Não tenho horário para 
começar a trabalhar, não. A hora que eu acordo eu estou trabalhando. 
Acordo umas 3h30 a 4h da madrugada, começo a trabalhar e só paro por 
volta das 17h", conta.
 Vizinho de seu Antônio, Avelino diz que faz inúmeras viagens por dia 
para tentar ganhar dinheiro, manter os animais vivos e ter o que comer. 
"Eu pego coisas para os animais comerem. Levo para a minha roça e também
 faço o trabalho para os outros. Eu vivo disso aqui, do trabalho que eu 
faço. Mas a seca afeta o dia-a-dia como um todo, principalmente os 
bichinhos que ficam sofrendo no sol quente e na seca. O que ameniza um 
pouco é a água da Embasa, que aqui cai cinco dias e passa 15 dias ou um 
mês sem cair. Da idade que eu estou, eu nunca vi uma seca como a desse 
ano aqui. Essa foi das piores que teve. Só Deus agora para ajudar", diz,
 antes de seguir viagem, apressado, debaixo do sol escaldante.
 A Embasa informou que estão sendo testadas intervenções para 
regularizar e ampliar o abastecimento de água fornecida à localidade. 
Segundo a empresa, uma das medidas a serem adotadas será a duplicação de
 16 km de adutora para parte da zona rural da cidade (distritos de 
Tiquaruçu, Matinha e Maria Quitéria) e para os municípios de Santa 
Bárbara, Tanquinho e Santanópolis, que, assim, como Feira de Santana, 
estão com situação de emergência decretada pela estiagem. A obra, 
conforme a Embasa, está prestes a ser licitada, com investimento de R$ 
4,7 milhões.
 Poucos passos à frente, seguindo o trajeto pela zona rural de Feira, o 
também agricultor Ademário de Jesus, 48 anos, dá farelo de milho e água 
em um tonel a seu cavalo, "Chocolate", na beira de estrada. A 
alimentação é para que o animal aguente mais um dia. Viaja puxando uma 
carroça por cerca 1,5 km por dia com o dono em busca de trabalho e água 
em tanques que ainda resistem à seca.
 "Ontem, estava limpando tanque, mas hoje a gente não foi porque 
trabalho tá difícil. Com uma seca dessa aí, quem tem condição de pagar a
 gente? Eles [os fazendeiros] dizem que não têm dinheiro. O negócio 
parou e a gente não acha nada, nem na roça e nem na cidade", afirma, 
enquanto mostra, entristecido, áreas que seriam de plantio completamente
 secas.
 A maioria dos moradores ali pratica a agricultura de subsistência, que 
tem como principal objetivo a produção de alimentos para suprir as 
necessidades das próprias famílias rurais – quando o tempo é bom, muitos
 ainda ganham dinheiro vendendo a produção para o mercado interno. 
Segundo o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Feira de 
Santana, José Ferreira Sales, o município possui mais de 20 mil 
agricultores, que têm na chuva a única esperança por dias melhores. 
Quando ela não vem, não só a sede como a fome bate à porta.
 Nesse ano, não adiantaram sequer os pedidos de chuva dos moradores 
feitos à São José, santo padroeiro da região que na crença cristã foi o 
esposo da Virgem Maria e o pai adotivo de Jesus. A tradição de plantar 
durante o mês de março, em que se comemora o dia do santo, para colher 
no São João, em junho, é centenária. Por isso, anualmente, os 
agricultores preparam a terra, compram sementes e aguardam ansiosos a 
chuva cair desde o final de cada ano.
 Com os planos frustrados, um clima de tensão toma conta dos 
agricultores. De acordo com a Estação Climatológica da Universidade 
Estadual de Feira de Santana (UEFS), choveu muito pouco nos dois últimos
 meses no município: somente 5 milímetros, enquanto eram esperados 50 
milímetros. E também não há previsão de chuva forte durante o outono. 
Desde 2011, a prefeitura publica, seguidamente, decretos de situação de 
emergência. O último, em vigor atualmente, foi em agosto de 2016.
 O Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) diz que a 
redução das chuvas já vem sendo observada desde 2010 na Bahia, mas foi a
 partir de 2012 que a situação se agravou.
 Desde o ano passado, no entanto, apenas em janeiro de 2016 foram 
observados volumes de chuvas acima da média. A partir de então, o 
predomínio foi de precipitações abaixo do esperado em todas as regiões.
 No período entre fevereiro de 2016 e janeiro de 2017, as chuvas no 
Recôncavo baiano ficaram entre 40% e 60% abaixo da média. Já no 
semiárido, como em algumas localidades do médio São Francisco, o déficit
 chegou aos 80%.
 "A seca afeta muito a vida. Esse ano, até plantei milho, feijão, 
batata, aipim. Tudo morreu. Com o sol desse jeito, eu estou vendo que só
 Deus mesmo para mandar um milagre para que a gente possa plantar. Não 
podemos fazer nada, só esperar", diz Ademário.
*do G1

 
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